Uma carta cheia de vocês

Eu já escrevi muito sobre você em vários lugares, mas enquanto escrevia, eu tinha a impressão de que eu ainda não tinha processado tudo o que aconteceu. Não sei se agora eu já processei, pois ainda faz pouco tempo que tudo aconteceu, mas talvez eu já saiba descrever e tirar conclusões em cima de algumas de todas as coisas que passei e senti quando estivemos juntas. De qualquer forma, vou falar sobre você. 

Nos conhecemos no nosso primeiro dia de aula do 6º ano. E como tivemos que nos mudar de escolas municipais para estaduais, me lembro que eu estava ansiosa para saber quais dos meus amigos viriam para a mesma escola que eu. Fiquei particularmente feliz de saber que o menino pelo qual eu era apaixonadinha há bastante tempo, estudaria na mesma sala que eu.


Ele se sentou em uma carteira mais à frente da sala e eu fiquei mais para o fundo, para poder observá-lo sem que ele pudesse fazer o mesmo comigo. E por coincidência, você se sentou em uma carteira ao lado da minha. Trocamos alguns sorrisos durante as duas primeiras aulas e nos apresentamos ao sairmos da sala na hora do recreio. A princípio, te achei simpática e tive a curiosa sensação de que seu rosto era familiar, mas acho que foi só impressão mesmo.


Nesse mesmo dia, você me apresentou para uma amiga sua, a Catharina, com quem você havia feito o 5° ano, e que é a minha amiga até hoje. Já não me lembro muito bem a ordem cronológica das coisas, mas sei que com o tempo, fomos nos conhecendo e eu comecei a gostar de ser sua amiga. 


Me recordo de uma vez que nós duas fizemos uma brincadeira bem boba em uma aula vaga. Escrevemos a palavra “sim” em um dos lados de uma borracha e “não” no lado oposto e fizemos perguntas ao jogar a borracha para o alto, para ver "o que o universo respondia". Até que você perguntou se eu já tinha beijado alguém. Não me lembro qual foi a resposta da borracha, mas apesar de hoje eu já não considerar esse como o meu primeiro beijo, eu te contei que, tecnicamente, o meu foi com uma garota. Então, com a futilidade de qualquer criança de 10 anos, você levantou a possibilidade de eu ser lésbica e eu disse algo como “é, talvez sim”. Esse dia é um exemplo de como aquele ano abriu a minha mente para novas possibilidades. 


Eu tinha acabado de entrar no Ensino Fundamental II e numa escola nova, onde também estudavam pessoas mais velhas, então muita coisa mudou na minha cabeça naquele ano. Tanto que eu comecei a cogitar coisas como gostar de garotas e até parei de gostar do menino que citei, do jeito que eu gostava antes. 


Falando nele, houve um dia em que eu, você e a Catha estávamos juntas na hora do recreio, provavelmente assistindo videoclipes do BTS, quando ele, tímido do jeito que é, me disse na frente de todo mundo que ainda gostava muito de mim e me pediu em namoro. Mas eu recusei, dizendo que também gostava muito dele, mas só como amigo. Sim, eu fiz isso porque nós éramos, e ainda somos crianças, mas talvez não seja só por isso… Vai ver, eu gostava bastante dele, só que não do jeito que eu achava que gostava. O bonitinho desta história é que há alguns dias atrás, ele me mandou uma declaração de amor pelo WhatsApp, mas eu disse a mesma coisa que havia dito na escola.


Eu já gostei de muitos garotos, mas já nem penso neles tanto quanto eu ainda penso em você. É, realmente, você foi uma coisa muito louca para mim. 


Não sei bem qual foi a primeira vez que eu pensei “eu gosto dela”, mas eu gostava muito de você, nem que fosse só como amiga. E no dia em que eu, a Catha e você estávamos no pátio da escola, eu decidi te contar isso. Mas como grande parte das meninas de 11 anos, é claro que eu não fui direto ao ponto dizendo algo simples, como “então, eu tô gostando de você, tá bom? Valeu, até mais”. Ao invés disso, resolvi fazer algo que pode ser considerado uma brincadeira: nós fomos para quase todos os cômodos da escola e em cada um deles eu fiz o sinal em Libras de uma das letras de uma frase que dizia que eu gostava de uma pessoa que tinha o seu nome.


Você deve se lembrar de que, devido a genialidade dessa brincadeira, demoramos um tempão para chegar ao final da frase, mas você pareceu não se importar com a longa duração desse “tour”, pois me acompanhou até o final, diferente da Catha, que acabou desistindo dele. Mesmo que eu tivesse certeza de que você já sabia, desde o início, o que eu estava querendo te contar, sua persistência prova que você realmente queria que eu falasse, com todas as letras, que eu gostava de você. Entretanto, a sua reação quando eu fiz o sinal da última letra, não foi nada positiva. Na verdade, você fingiu que estava chocada e correu para a sala de aula. E eu fui atrás.


Eu te achava super descolada porque você falava palavrões e tinha um jeitinho meio… tipo, “eu sou incrível”. Logo quando penso em você, me vem à cabeça a imagem de você fazendo aquela piscadela que era um dos seus maiores vícios. Me lembro da marquinha que você tem no nariz e do seu cabelo liso e castanho. Apesar da Catharina ser a mais velha de nós, com 16 anos, e de eu ser uns 6 meses mais velha que você (o que me faz uma pisciana e também te faz uma virginiana), você sempre foi a mais alta de nós. Não sei se isso mudou agora, porque faz tempo que eu não vejo vocês presencialmente, mas acredito que não. 


Eu me arrependo tanto das vezes que parei de prestar atenção nas aulas para ficar conversando com você. Sei que é legal que éramos muito amigas e tal, mas nós estávamos lá principalmente para estudar. 


É estranho, mas além de lembrar de você piscando e sorrindo, também me lembro de como o seu rosto ficava vermelho quando você chorava, o que começou a acontecer com frequência. Eu acho que você estava triste assim por causa de problemas em casa, porque já me contou que quando os seus pais se separaram, seu pai saiu de casa deixando sua mãe sozinha, tendo que se virar para cuidar de você e do seu irmão mais velho.


Mas você nunca me contava o que estava acontecendo, pois enquanto eu sempre fui um livro aberto com você (o que pode ter me prejudicado algumas vezes), você permanecia muito fechada, vivia mentindo para mim, pegando as coisas do meu estojo sem me avisar e eu já percorri a escola atrás de você várias vezes quando você sumia, parecendo estar me evitando.


Sei que eu também não fui a melhor amiga que podia ser, o que pode ser percebido na vez em que eu e a Catha mexemos no seu celular sem a sua permissão, para ver se a tia dela tinha respondido a mensagem que mandamos (esse dia foi péssimo). Peço desculpa por isso. 


Depois de te pedir desculpas, tenho que dizer que eu ficava muito brava quando você me acusava de ficar apenas falando dos meus “problemas” e te pedindo consolo, e de não me importar com os seus problemas e não te escutar, porque isso não é verdade. Tudo bem, pode ter havido uma ou outra vez em que eu fui um pouco egoísta, mas toda vez que você aparecia chorando, eu te perguntava o que estava acontecendo e insistia para você me dizer, mas, como eu já disse, você nunca me contava nada, só ficava soltando frases sem sentido e balançando a cabeça na intenção de me fazer desistir de tentar te entender. 


Você fazia desenhos e cartinhas nos quais dizia que era a razão e eu a emoção. Não sei bem o que você queria dizer com isso, mas eu tenho uma teoria: eu sinto que você tinha muita vergonha de gostar de mim. Ou de, ao menos, achar que gostava de mim. Mas eu não. Eu não tinha medo de gostar de você. Mas isso é fácil pra mim, afinal, eu tenho pais liberais que não me julgariam se, um dia, quando eu for mais velha, eu chegar e disser que gosto de garotas. Não tenho certeza se esse também é o seu caso.


A relação entre eu, você e a Catha era difícil. Nos faltava muita sinceridade e maturidade e no final as três ficavam chorando pelos cantos. Quando a minha mãe começou a perceber isso, muito antes que eu, me aconselhou a parar de falar com você. Mas eu não a escutei. 


Como seria a vida na escola sem as nossas conversas sobre o BTS, sem a paciência que você tinha para ficar me escutando cantar o recreio inteiro na fila do lanche? Mas as coisas começaram a piorar e então resolvi me afastar de você. Te mandei uma cartinha dizendo que eu gostava muito de você, mas que eu achava que era melhor nós nos afastarmos. A Catha leu a cartinha e mandou outra para você dizendo que ela também ia fazer isso. 


O começo de 2020 foi um pouco triste para mim. Eu estava tentando te evitar e acabei ficando meio sozinha. Aí veio a pandemia e eu nunca mais te vi. Mas ainda penso em você. Talvez nós realmente fiquemos melhores longe uma da outra, mas confesso que, como já deve ter dado para perceber, sinto a sua falta. Mas vou te superar. Sei que vou.



Para ser sincera, não sei se vale a pena publicar essas memórias. Sei que as escrevi por um motivo que pode ser extremamente bobo, mas, de qualquer forma, é sempre bom escrever memórias, para não se esquecer de coisas que consideramos importantes e entender nossas percepções sobre elas. Agora, se compartilhá-las com outras pessoas, as ajuda de alguma forma, só você, leitor deste texto, pode me dizer.


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